Desde quando a crise hídrica se tornou mais grave, em meados de 2014, tem se falado que dentre as atividades humanas a agricultura é a que mais consome água doce. Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), 70% do total disponível – que já não é muito, apenas 3% da água existente no planeta – usada para irrigação. No Brasil, esse índice chega a 72%. Só na cana-de-açúcar, uma das maiores culturas do país e da qual o estado de São Paulo é responsável pela metade da produção nacional, são necessários pelo menos 1.500 litros por metro quadrado de área cultivada por ano.
Diante desse quadro e da maior seca dos anos recentes que os paulistas enfrentam, e mesmo antes de esse problema aparecer de forma mais dramática, pesquisadores das três universidades estaduais desenvolvem pesquisas em busca de alternativas. A mais promissora é o uso do esgoto doméstico tratado para irrigação. Chamada de água de reúso, essa opção aumenta a produtividade da cana e traz ganhos ambientais, porque deixa de ser jogada nos rios e em outros mananciais.
Um desses projetos é desenvolvido pela equipe do engenheiro agrônomo Edson Eiji Matsura, professor da Faculdade de Engenharia Agrícola (Feagri) da Universidade Estadual de Campinas(Unicamp). “Nosso objetivo principal era saber como poderíamos produzir cana-de-açúcar com ajuda da irrigação de forma sustentável, considerando os aspectos econômico, ambiental e social, porque toda a sociedade ganha com a diminuição do consumo de água”, explica. O resultado indicou que a redução da utilização de água em um plantio de cana experimental foi de 50%. “O principal desafio foi utilizar água de reúso proveniente de um tratamento do esgoto doméstico da nossa própria faculdade.”
Para fazer o experimento, a equipe da Unicamp armazena o esgoto da Feagri e faz três tipos de tratamento, o primeiro em reatores anaeróbicos (tanques fechados com bactérias), depois com plantas macrófitas aquáticas que possuem grandes sistemas de raízes que filtram o esgoto. Por último, o líquido passa por filtros de areia. Depois, a água residuária é transportada até a lavoura por meio de bombas e tubulações. Em seguida, ela é distribuída na plantação por tubos gotejadores, enterrados em profundidades de 20 centímetros (cm) ou 40 cm, técnica chamada de irrigação subsuperficial ou subterrânea. “É a forma mais segura de fazer a irrigação com esse material, porque evita a contaminação das pessoas e da própria planta acima do solo”, explica Matsura. “Além disso, também é a mais eficiente, porque não há perda por evaporação.”
O experimento foi realizado com o plantio de cana numa área de meio hectare, equivalente a 5 mil metros quadrados (m2), no campo experimental da Feagri, que tem no total cerca de 10 hectares. A cultura da cana começa com um plantio, que é colhido 18 meses depois. Uma pequena parte da planta cortada é deixada na lavoura e brota. Desde então, já foram realizadas três colheitas. Numa boa plantação comercial pode haver até sete delas. Depois, a lavoura deve ser refeita, com novo plantio. Com irrigação de água residuária, Matsura espera chegar a 10.
O otimismo vem da eficiência da irrigação com esgoto doméstico testado em blocos na área de cultivo da Feagri, com nove tipos de tratamento: sem irrigação, irrigação com esgoto aplicado a 20 cm de profundidade com e sem fertirrigação, quando há acréscimo de adubos químicos à água residuária, esgoto a 40 cm com e sem fertirrigação, irrigação com água de reservatório superficial (lago ou rio) a 20 cm e água de reservatório a 40 cm. Para cada um foi avaliado, entre outros parâmetros, produtividade, desenvolvimento vegetativo, trocas gasosas, diagnóstico nutricional das folhas e dos colmos e fertilidade do solo na primeira e segunda colheitas”, explicaIvo Zution Gonçalves, orientando de Matsura, em sua tese de doutorado defendida na Feagri, no início de fevereiro.
Entre os principais resultados do projeto está a economia em fertilizantes. A concentração de nutrientes nos efluentes permitiu a redução de até 100% na necessidade do uso de nitrogênio e fósforo na segunda colheita, e mais de 50% para o fósforo, nitrogênio e potássio na primeira em comparação com os tratamentos irrigados com a água de reservatório. Quanto à produtividade, ela chegou a mais de 200 toneladas por hectare nas parcelas irrigadas com esgoto, o dobro das sem irrigação, apenas com a água da chuva.
Segundo Matsura, em todos os tratamentos irrigados a pegada hídrica, que é o volume total de água consumido direta e indiretamente no processo de produção de bens e serviços, foi inferior ao não irrigado. Isso acontece porque a irrigada gasta menos água proporcionalmente, já que produz mais cana. Assim, ao se dividir a produção pelo consumo de água, a pegada hídrica é menor na irrigada. No caso da irrigação com esgoto e fertirrigação, a redução chegou a mais de 50% em comparação com a área não irrigada.
“A pegada hídrica da cana nos cultivos irrigados foi inferior à estimada nos cultivos não irrigados, com redução variando de 35,3 metros cúbicos (m³) a 23,1 m³ por tonelada para os tratamentos com esgoto e fertirrigação e águas de rios e lagos sem esse adicional de adubo”, diz Matsura. “Os resultados confirmam a proposição da irrigação por gotejamento subsuperficial em reduzir a pegada hídrica no cultivo de cana-de-açúcar.”
O trabalho de Matsura é uma continuidade de uma outra pesquisa coordenada pelo professor Adolpho José Melfi, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), da Universidade de São Paulo(USP), em Piracicaba. Os pesquisadores liderados por Melfi também testaram, entre 2005 e 2010, o uso de esgoto doméstico tratado na irrigação de cana-de-açúcar (ver Pesquisa Fapesp nº 166). Um dos principais resultados obtidos foi um aumento de 60% na produtividade da cultura.
“Além disso, demonstramos que é possível, dependendo do manejo da irrigação, proporcionar o fornecimento completo de nitrogênio, potássio e cálcio em atendimento à necessidade da cana”, conta Melfi. “A irrigação com efluentes tratados se mostrou uma prática viável para a agricultura, do ponto de vista econômico, com a redução do uso de fertilizantes minerais, e ambiental, ao propiciar uma melhor gestão dos recursos hídricos”, diz Célia Regina Montes, pesquisadora do Centro de Energia Nuclear na Agricultura (Cena) da USP, que também participou do trabalho. “Outra vantagem é que em épocas de estiagem a cultura não sofreria com a falta de umidade, porque o esgoto é produzido continuamente e poderia ser utilizado.”
Matsura começou a trabalhar com água de reúso em 1999. “O objetivo era estudar a utilização de água residuária tratada por meio de leitos cultivados com plantas macrófitas e seu impacto sobre o sistema solo-planta, além da irrigação por aspersão, gotejamento superficial e subterrâneo. Depois de 12 anos, no entanto, percebi que pouco tínhamos evoluído em termos de uso e de legislação adequada no emprego desse material na agricultura.”
A situação começou a mudar em 2010, quando ele recebeu um convite para conhecer o projeto coordenado pelo professor Melfi, em Piracicaba. “Nesse momento compreendi a possibilidade de retomarmos os estudos anteriores e ampliarmos os conhecimentos na área, principalmente em sistemas produtivos sustentáveis”, conta. “Além disso, com a cana-de-açúcar, podíamos explorar a tecnologia existente na produção de etanol, o que facilitaria o uso de esgoto tratado por não ser alimento.”
Em linha de pesquisa semelhante, mas com outra planta, o pesquisador Rogério Teixeira de Faria, da Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias do campus de Jaboticabal da Universidade Estadual Paulista (Unesp), estudou o uso dos efluentes domésticos com fertirrigação no cultivo da Brachiaria brizantha, uma gramínea perene originária da África que se adaptou ao Brasil e é usada na alimentação animal.
“O aumento populacional concentrado em áreas urbanas incrementa significativamente a produção de esgoto”, diz Faria. “Devido ao custo elevado dos sistemas de tratamento da água, há necessidade de se promover o uso do esgoto.” Por isso, segundo ele, a utilização desse material para irrigação é uma alternativa cada vez mais atraente. A aplicação de águas residuárias por meio da fertirrigação supre as necessidades hídricas da cultura, irrigando e aplicando os resíduos com alta taxa de micro e macronutrientes.
“No nosso trabalho, o efluente de esgoto tratado forneceu até 1.000 quilos por hectare (kg/ha) de nitrogênio e até 600 kg/ha de potássio por ano, além de outros nutrientes essenciais para a forrageira”, explica. Esse suprimento corresponde às quantidades de fertilizantes minerais que o agricultor pode economizar, diminuindo o custo de produção. Constatou-se também aumento da receita bruta da cultura, uma vez que a braquiária apresentou aumento de produção de forragem em cerca de 60%.
Irrigação com esgoto doméstico tratado não é a única forma de reduzir o consumo de água na agricultura brasileira, principalmente no setor sucroalcooleiro. É o que mostra um trabalho realizado pelos pesquisadores Fábio César da Silva, da Embrapa Informática Agropecuária, de Campinas, e Alexei Barban do Patrocínio, daFaculdade de Tecnologia do Estado de São Paulo (Fatec/SP), de Piracicaba.
Realizada em quatro usinas — três de São Paulo e uma do Paraná, — a pesquisa demonstrou que algumas tecnologias simples como a limpeza a seco da cana para a queima da palha nas caldeiras de alta pressão fazem o consumo de água diminuir entre 11% e 13%, em relação à lavagem úmida usual. “Outra medida, a substituição do spray (sistema de refrigeração por aspersão) pela torre de resfriamento reduziria as perdas de 5% a 8% para 1,5% a 3%, no total do balanço hídrico”, diz Silva.
Com essas ações, as quatro usinas em conjunto, que têm capacidade de processar 2.400 toneladas de cana por hora, poderiam economizar, em números absolutos, 32.895 m³ de água por dia. Segundo Silva, os critérios da certificação internacional das usinas estabelecem hoje que o consumo seja inferior a 20 litros por quilo de açúcar produzido e 30 litros por quilo de etanol. “Os valores obtidos no nosso trabalho demonstram que existe a possibilidade de se obter um consumo hídrico menor que 10 litros por quilo de açúcar”, diz. “Por isso, os resultados da pesquisa auxiliam no desenvolvimento de soluções sustentáveis para as produções de etanol e de açúcar.”
Além dos ganhos econômicos, esses estudos mostram os benefícios ambientais que as alternativas apontadas nos trabalhos podem trazer. Um deles é a preservação dos lagos, rios e outros reservatórios, além das águas subterrâneas, porque o esgoto usado na irrigação deixa de ser lançado nesses mananciais. “Isso significa utilizar essas fontes para usos mais nobres, como o consumo humano e animal, dado que essas águas estão ficando mais escassas.”
Apesar dos bons resultados obtidos experimentalmente até agora e das perspectivas que eles abrem, ainda há alguns obstáculos para a utilização em larga escala do esgoto doméstico tratado na irrigação — nenhum deles intransponível. Melfi lembra, por exemplo, que os efluentes podem conter em sua composição metais pesados, organismos patogênicos, alta quantidade de sódio e nitrogênio. “Tratando-se de esgotos domésticos, no entanto, os metais pesados não impedem sua utilização na irrigação, porque os teores, quando presentes, estão abaixo dos valores restritivos impostos pela legislação e pela Organização Mundial da Saúde [OMS]”, garante.
Em relação aos riscos com organismos patogênicos, Melfi diz que eles podem ser minimizados se forem escolhidas culturas para irrigação que sejam processadas industrialmente, como é o caso da cana-de-açúcar. Para outras culturas há a possibilidade de desinfetar o esgoto tratado antes de sua utilização na irrigação com cloro, por exemplo. “Quanto ao sódio, no nosso projeto verificamos que a alta concentração deste elemento, que pode causar efeitos negativos sobre as propriedades físicas do solo, foi naturalmente reversível após períodos de chuva”, conta. “Além disso, é possível, se necessário, escolher manejos para correção do solo com a aplicação do gesso agrícola. Com relação ao nitrogênio, adequar às lâminas de irrigação, ou seja, fornecer a quantidade exata exigida pela cultura, evita, principalmente, a lixiviação de nitrato para o lençol freático.”
Um obstáculo mais sério é a inexistência de uma legislação específica que regulamente o assunto. O que existe hoje é apenas a Resolução nº 375, de 29 de agosto de 2006, do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), que trata do lodo de esgoto doméstico, que é a parte sólida, subproduto do tratamento, além da Resolução 121/2010 do Conselho Nacional de Recursos Hídricos(CNRH), que estabelece as diretrizes e os critérios para a prática de reúso direto de água não potável para as modalidades agrícola e florestal. “O Brasil tem pouca experiência com a utilização de efluentes em irrigação, por isso a legislação não é específica”, diz Faria. Ele acredita que esses estudos servem de base para a elaboração de uma legislação específica, assim como para a instalação de protótipos em cidades-teste.
“O protótipo seria testado em estações de tratamento de esgoto de cidades pequenas e médias, com até cerca de 500 mil habitantes, evitando o escoamento dessa água para os mananciais”, explica. “Em cidades médias e pequenas essa questão pode ser facilmente resolvida prevendo-se a incorporação de áreas para aplicação do efluente junto ao projeto das futuras estações de tratamento, uma vez que a área demandada é pequena.” Assim, numa cidade de cerca de 80 mil habitantes, como Jaboticabal, no interior paulista, o volume de efluentes gerado possibilitaria irrigar 240 a 320 hectares, enquanto para a vizinha Ribeirão Preto, de cerca de 600 mil habitantes, a área irrigada seria de 1.800 a 2.400 hectares.
FONTE
Revista Pesquisa Fapesp
Evanildo da Silveira – Jornalista
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