O artigo discorre sobre a construção da competitividade nacional a partir do investimento em pesquisa. Toma como exemplo, o caso do agronegócio café e a recente autorização realizada pelo Ministério da Agricultura para a importação de defensivo agrícola para o combate da broca-do-café
Mara Luiza, 18 de julho de 2014
Faleceu João Ubaldo Ribeiro, grande interprete da alma brasileira. Em sua última crônica publicada hoje no Jornal O Estado de São Paulo, brindou-nos com perspicaz reflexão crítica sobre a possibilidade de num futuro breve, algum ente do poder executivo ou legislativo prover a sociedade sobre um aparato legal sobre o uso do papel higiênico. A crônica presta-se para discutir sobre a falta de ênfase do estado brasileiro naquilo que é efetivamente essencial em detrimento da promoção da perfumaria, o que a torna um fragmento literário inquietante, que se aplica a outras vertentes.
Meu artigo não é sobre a retórica de João Ubaldo Ribeiro, um autor do qual gosto muito, mas sobre a falácia da competitividade do agronegócio café brasileiro, que está mais para aquela poesia de Carlos Drummond de Andrade, Quadrilha.
Começo a tônica, discorrendo sobre a chancela oferecida pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, autorizando a comercialização do Ciantraniliprole, da Du Pont. Esse princípio ativo fomentará o negócio do combate ao Hypothenemus hampei, popularmente conhecida como broca-do-café, considerada uma das principais pragas da cafeicultura. O Brasil se tornará importador desse princípio ativo, que de acordo com o Ministério, é aceito nos principais mercados consumidores do café brasileiro localizados na América do Norte, Ásia e Europa.
Pois bem. Como todos sabem, esse café in natura brasileiro, borrifado com o defensivo importado, é exportado para os mercados consumidores, ajudando na conquista do superávit da nossa balança comercial, na mesma lógica das bananas, do minério de ferro e da soja em grão.
Além mar, esse café brasileiro sem rosto, vira café industrializado com origem (made in algum país importador do café do Brasil) e é acondicionado em embalagens interessantes tais como as cápsulas de café, exportadas para avídos mercados consumidores como o Brasil, sob a justificativa de formação de cultura de consumo, em quantidades de 250g, 500g. Muitas vezes essas pequenas doses atingem preços superiores ao preço de uma saca de 60 kg de café in natura de altíssima qualidade. Comumente ficamos felizes por isso e quando não podemos pagar pelo nosso luxo, nos felicitamos mais ainda com a quebra de patente da tecnologia desenvolvida por outras.
Convenhamos: o brasileiro com síndrome de primeiro mundo adora pagar pelo que é importado: é um chique que nos chama nas entrelinhas de idiotas. Pagamos, no caso do café até R$ 2,50 por uma cápsula de café brasileiro industrializado na Suíça ou na Itália e ainda sorrimos ao invés de ficarmos indignados.
A nossa expressão quando consumimos o café brasileiro com roupa importada é a mesma que fizemos quando o Brasil perdeu numa goleada histórica para a Alemanha dentro de casa: os caras fizeram dança da chuva com índios pataxós no lugar aonde os europeus chegaram ao Brasil pela primeira vez em 1500, deram uns acenos, fizeram um vídeo com música brasileira, postagens de muito obrigado e um cheque de 10 mil euros (uma substituição moderna dos espelhos) e no final, ao invés de apoiarmos a Argentina, importante parceiro comercial regional, torcemos pela Alemanha, que no caso do agronegócio café nos dá um show de competência consagrado. Sentimos-nos representados pela Taça da Copa voltar para a Europa tal como ficamos felizes quando se exporta o esforço de um produtor rural que envia seu café para aquele continente em saco de juta sem qualquer outro tipo de agregação de valor.
Perdemos e fica tudo bem? Será que ninguém no Brasil tem indignação, ou melhor, um mínimo de paixão pelo país para compreender que ainda não deixamos de lado a síndrome do Brasil Colônia? Ou ainda, será que nos enquadraremos como uma eterna reprodução da obra de José de Alencar? Será que é esse perfil que queremos carregar para sempre? Acredito que esse perfil para o agronegócio café já passou da hora de ser substituído.
Domenico di Masi confere a sociedade brasileira em sua última obra “O Futuro Já Chegou”, o título de civilização da era pós-moderna, graças a nossa diversidade populacional, à nossa criatividade, a nossa capacidade de inovação. Não acredito que ele esteja errado. O que existe é uma acomodação, um incômodo discurso de coitadinho, que nos impede de assumir a nossa história e fazer diferente.
Sem dúvida é mais fácil importar tecnologia do que criar uma. Criar é coisa para quem tem competência e exige muito esforço e recursos, inclusive financeiros. Importar por importar, sem realização de benchmarking ou transferência de conhecimento para aprimoramento, já diz respeito ao segundo nível da ciência que não é desejável pelo que somos como nação. A cadeia agroindustrial do café no Brasil, por ser a mais antiga, a mais tradicional, a que ajudou a construir o país, deveria dar o exemplo e liderar o salto. Mas não faz isso, porque a zona de conforto é legal: sempre existirá o Funcafé para patrocinar a inércia, o comodismo, a falta de vontade de crescer com base na nossa própria tecnologia.
Onde é que fica a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária EMBRAPA, mais especificamente a EMBRAPA CAFÉ e o Consórcio Brasileiro de Pesquisa do Café nesse cenário de combate a um inseto tão brasileiro? A pesquisa brasileira mais uma vez perde a oportunidade de mudar o mundo por falta de investimento e o silêncio é ensurdecedor.
O Funcafé arrecada R$ 34 milhões em média ao ano e tem como uma das prerrogativas assentadas em lei, o investimento em pesquisa. Mas não é alocado lá, porque o recurso, que deveria ir para o marketing, para a pesquisa, para a promoção comercial do produto, fica alocado na política de financiamento de mão-para-boca. É importante ressaltar que essa destinação dos recursos fica a cargo do Conselho Deliberativo de Política Cafeeira, responsável pela alocação do recurso do fundo.
Todas as vezes que o Brasil aportou recursos em pesquisa, tivemos retornos excepcionais, que imprimiram positivamente nossa capacidade no mundo. Cito dois exemplos que considero emblemáticos: Programa Café e Saúde, onde através do Funcafé, foram investidos US$ 500 mil para pesquisas na Universidade de Vanderbilt, e o Genoma do Café, financiado por sua vez pela FAPESP, que demandou um investimento de R$ 6 milhões. Ambos os projetos se tornaram referências na Organização Internacional do Café – OIC.
O Brasil por falta de foco naquilo que é essencial, que é a consolidação de sua vantagem competitiva, exporta empregos, exporta divisas e dá um show de incompetência aparente, naquilo que efetivamente tem competência para se impor mundialmente. Mas não o faz, talvez, porque o papel de Gigante Adormecido seja mais legal, embora essa posição gere custos. Um bom exemplo disso é o fato da China, um país em desenvolvimento, que faz parte dos BRIC’s como o Brasil faz, assinar conosco acordos comerciais que envolvem exportação de commodities brasileiras (soja, carne, minério de ferro, petróleo) e importação de produtos de alto valor agregado chineses (chips, processadores de dados, carros, etc).
Para encerrar esse texto, remeto-me ao pensamento de Celso Furtado, através de um trecho extraído do texto “Formação de Capital e Desenvolvimento Econômico”, de 1952: “O processo de desenvolvimento se realiza seja através de combinações novas dos fatores existentes ao nível da técnica conhecida, seja através da introdução de inovações técnicas. Numa simplificação teórica se poderia admitir como sendo plenamente desenvolvidas num momento dado, aquelas regiões em que, não havendo desocupação de fatores, só é possível aumentar a produtividade (a renda real per capita) introduzindo novas técnicas. Por outro lado, as regiões cuja produtividade aumenta ou poderia aumentar pela simples implantação das técnicas já conhecidas seriam consideradas em graus diversos de subdesenvolvimento. O crescimento de uma economia desenvolvida é, portanto, principalmente um problema de acumulação de novos conhecimentos científicos e de progressos de aplicação desses conhecimentos. O crescimento de economias subdesenvolvidas é sobretudo um processo de assimilação de técnica prevalecente na época”.
A ciência é o fiel da balança, portanto. E para que o fiel da balança penda favoravelmente para o lado brasileiro, sem dúvida, é necessário que os tomadores de decisão sejam ousados e dêem um ou mais passos a frente e façam os investimentos nas demandas corretas. Caso contrário, nunca deixaremos o papel de absorvedores.
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