Uma grave ameaça às cadeias produtivas integradas do agronegócio - por Marcos Fava Neves

Escrevo esta análise motivado pela matéria do Valor Econômico de 22/02/14, com o título “Cruzada do MPT contra a terceirização já altera relações na citricultura”. Chamo a atenção do leitor, do empresário da agricultura brasileira, do Governo e da imprensa para o grave assunto tratado nesta matéria, tema de duas análises anteriores.

Para o leitor que não conheceu este problema ainda, basicamente o MPT (Ministério Público do Trabalho) e o Poder Judiciário determinaram que a indústria de suco de laranja apenas processe frutas que tenham sido plantadas e colhidas por elas e em outra decisão relativamente semelhante afetou o setor de cana, intervindo na maior empresa que atua no Brasil.
 
Se esta intervenção do judiciário já preocupava muito, a matéria do Valor trouxe uma preocupação adicional, advinda do fato dos jornalistas que cobrem o agronegócio brasileiro, e ressalto estarem cada vez mais preparados e técnicos, estarem, neste caso e em outros correlatos, usando o termo terceirização de maneira unilateral, como se observa no título da matéria do Valor e com isto, quase que referendando uma visão do judiciário que se mostra equivocada quando analisada sob a ótica administrativa (empresarial) e econômica. 
 
Explico a seguir que o caso da citricultura não é de terceirização, portanto o título da matéria tem problemas. É importante termos uma visão clara de três conceitos centrais, antes de voltarmos a analisar o problema nas cadeias do agronegócio. 
 
O primeiro conceito central refere-se ao fato de apesar do mundo econômico contemporâneo cada vez mais se organizar na forma de cadeias produtivas integradas, inclusive transnacionais, com verdadeiros conjuntos ou nexos de contratos orientados e dirigidos pela demanda visando competitividade, os setores da economia ainda são divididos em primário, que corresponde à agricultura (produção através da exploração de recursos da natureza),  o secundário, que é composto pela indústria (setor transformador de matérias primas produzidas pelo setor primário), e o terciário, que é o setor de serviços. Isto é fato consagrado e aceito mundialmente.
 
O segundo conceito central é o de atividade-fim. Esta é a finalidade principal do negócio, o objetivo social e de existência de determinada empresa ou organização privada/pública. Identifica a atuação central de uma organização, onde se desenvolvem os processos de trabalho para executar a função, o objetivo para o qual uma organização privada ou pública foi criada. É de se esperar que o contrato social defina muito bem a atividade-fim da empresa. A atividade-fim de um abatedouro de animais, seja bois, frango, suínos, ovinos ou outros é o abate e a comercialização de carnes. A atividade fim de uma torrefação de café é a de adquirir os grãos de café, torrá-los e comercializar o café, e assim sucessivamente nas outras cadeias produtivas.
 
O terceiro conceito ou entendimento importante é sobre terceirização (em inglês usa-se “outsourcing”). Aqui vale uma explicação um pouco mais densa, pois da forma como o conceito vem sendo usado por partes do Judiciário e da imprensa, corremos o risco também de demonizar uma das práticas mais interessantes em administração de empresas, que é a terceirização. 
 
Existem diversas definições, mas na essência, trata-se de uma prática empresarial que visa competitividade (ganhos de eficiência pela redução de custos ou melhorias de qualidade) substituindo uma atividade antes feita internamente pela empresa por uma nova configuração, via contratação de força externa de trabalho, de agentes especializados, externos à empresa, em contratos que podem ser de curto, médio e longo prazos. 
 
Parte-se do princípio, correto, de que agentes especializados conseguem reduzir capacidades ociosas, ter escala, foco, capacidade de inovação e principalmente, ter os benefícios da especialização, transferindo parte destes benefícios às empresas contratantes, gerando eficiência no sistema. Ou seja, a terceirização é uma atividade que cria, captura e compartilha valor quando bem executada.
 
A literatura de administração diz que podem ser terceirizadas atividades-meio ou até mesmo atividades-fim de uma empresa. “Outsourcing” é um conceito moderno na economia, nas cadeias produtivas integradas, sendo que hoje existem casos mundiais de sucesso de empresas que contratam até a atividade-fim, a elaboração de seu principal produto, para empresas especializadas, como por exemplo uma das marcas mais famosas de tênis e roupas esportivas. O whisky mais conhecido dos brasileiros é produzido por diversas destilarias terceirizadas sob encomenda e grande controle feito pela destilaria principal.
 
O “outsourcing” ou terceirização também possibilita inclusão social e acesso a mercados. Entre muitos casos, cito um que conheci na região de Mendoza (Argentina) onde existem engarrafadoras autônomas (móveis) de vinhos, ou seja, uma pequena vinícola não necessita ter a atividade de envase, que é cara e ficaria ociosa boa parte do tempo. Quando sua produção de uvas e vinho a granel está pronta, ela contrata a o engarrafamento feito por terceiros, que visitam sua propriedade em caminhões específicos, executam o serviço e deixam os produtos finais (vinhos engarrafados) encaixotados, permitindo com isto a inclusão de pequenas empresas no sistema econômico. Demonizar a terceirização significa matar o empreendedorismo e diminuir possibilidades de ascensão social também. 
 
Para o leitor que deseja mais embasamento, o estabelecimento das fronteiras de uma empresa, parcerias e verticalização de atividades no sistema econômico são explicados desde o seminal artigo do inglês Ronald Coase, em 1937 (The Nature of the Firm) e posteriormente nos influenciadores estudos do prêmio Nobel em economia (2009) Oliver Williamson. Leitura densa, porém agradável e de grande aplicabilidade em estratégia empresarial. 
 
Vistos os conceitos de setores primário, secundário e terciário da economia, de atividade-fim e de terceirização, voltamos ao agronegócio. 
 
Há uma confusão que precisa ser debelada. Por definição, não é atividade-fim de uma indústria de suco de laranja, de maçã, pêssego, manga, uva, goiaba, entre outras frutas, plantar, produzir e colher as frutas que usa em sua fábrica, da mesma forma que não é atividade-fim de um frigorífico de animais ter confinamento ou granja, de uma torrefadora de café plantar e colher café, de uma usina de cana plantar e colher canaviais, de uma empresa de tabaco plantar e colher fumo, de uma fiação plantar e colher algodão, de uma fecularia plantar e colher mandioca, de uma produtora de óleos plantar e colher soja. Sua atividade-fim é clara, trata-se do processamento industrial, setor secundário da economia, que é distinto do setor primário, o agrícola. 
 
Mas o leitor aqui pode ficar em dúvida pois vê estas empresas as vezes executarem estas atividades tecnologicamente distintas, ou seja, frigoríficos também têm fazendas, abatedouros têm granjas, usinas têm cana própria, fábricas de suco têm frutas próprias e temos também os casos de cooperativas de produtores rurais que montam fábricas de processamento de grãos, frutas e abatedouro de animais. 
 
Se existe integração vertical para trás, ou seja, se parte destas indústrias executa parte destas atividades do setor primário da economia, ou é responsável por parte do seu suprimento, ou se produtores rurais, principalmente via cooperativas constroem fábricas, o que é uma integração vertical para frente, o fazem no sentido de redução de custos de transação, redução de incerteza e até ganhos de eficiência e de agregação de valor. Mas estas decisões são feitas por finalidade de estratégia de negócios, por opção estratégica, e não por serem atividade-fim, pois não são. A leitura das obras de Oliver Williamson nos ajuda a entender bem a racionalidade (ou as vezes irracionalidade!) destes movimentos empresariais de verticalização para frente ou para trás em uma cadeia produtiva integrada. 
 
Como já explorei em dois outros textos sobre este tema, declaro aqui não ter a mínima dúvida da boa intenção do Poder Judiciário, mas esta interferência no funcionamento da cadeia produtiva, refletida na decisão de que as indústrias de suco de laranja plantem e colham toda a fruta necessária para seu processamento, é errônea, apresenta uma visão parcial dos setores da economia e do conceito de atividade-fim. 
 
É também um retrocesso econômico e social, como vem sendo atestado pelos sindicatos de produtores rurais, comprovado na matéria do Valor. Se existe precarização das condições de trabalho, o que deve ser combatido é justamente a precarização das condições e não alterar o modelo econômico de sucesso. Trata-se da aplicação de um medicamento forte e equivocado para curar um problema. É aquela velha história, resolve-se o problema matando o paciente. Ou... tira-se a verruga do dedo pela amputação do braço. 
 
Neste caso da laranja não vai matar o paciente, mas é uma medida que tira eficiência, competitividade e capacidade exportadora deste setor e que pode ser altamente concentradora, condenando-o a ter menos de uma centena de empresários rurais no médio prazo, além de arriscar pequenos produtores a perderem todas as suas frutas e o seu patrimônio agora, como alertado pelo Sindicato.
 
Esta decisão do Judiciário deveria preocupar e muito as outras cadeias produtivas integradas do agronegócio e ao Governo, pelo saldo na balança comercial trazido por este setor, além do desenvolvimento e geração de empregos. Não há impedimento ou razões distintas para que esta decisão tomada no setor de laranja e que já está acontecendo parcialmente na cana, venha como um dominó pegando também o café, as carnes, o fumo, grãos, outras frutas e outros produtos, comprometendo a eficiência e competitividade do agronegócio.
 
Também aos jornalistas fica a minha recomendação que percebam a importância deste assunto e tratem o tema não somente sob a ótica jurídica, mas sob a ótica econômica e de eficiência empresarial. 
 
A colheita das frutas, do café, da cana, do fumo, da soja, do milho é uma função do produtor rural, pois trata-se da sua produção, da sua atividade-fim. Se a indústria processadora desejar colher por questão de escala e eficiência, é uma decisão a ser tomada em conjunto com o produtor, e representa sim uma terceirização, mas do produtor rural. É preciso ficar bem claro: é o produtor rural quem terceiriza a colheita dos seus produtos para a indústria. Aceitar que a colheita de produtos agrícolas é uma terceirização da indústria é equivocado.
 
Marcos Fava Neves é professor titular de planejamento estratégico e cadeias alimentares da FEA-RP/USP. Autor de 45 livros publicados em oito países. Foi professor visitante da Purdue University (Indiana, EUA) em 2013.

Fonte

Suinocultura industrial

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