José Graziano da Silva

Há uma novidade no ar. Ela encerra um impulso ordenador tão incisivo quanto os efeitos da crise, que desde 2008 condiciona a sorte dos povos e a economia do planeta



Há uma novidade no ar. Ela encerra um impulso ordenador tão incisivo quanto os efeitos da crise, que desde 2008 condiciona a sorte dos povos e a economia do planeta.

As nações em desenvolvimento já não aceitam o papel de uma folha em branco, sobre a qual se escreveu a subordinação do seu destino a interesses que, frequentemente, não eram os de sua sociedade.

Bem antes do colapso financeiro, a agenda da segurança alimentar já havia aglutinado a consciência das nações em torno dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), pactuados em 2000.

Uma nova governança deve ser construída. Seus atores são as nações que precisam se ancorar na justiça para crescer; seu idioma é o multilateralismo que reconhece a soberania dos povos e faz da parceria entre iguais o novo eixo ordenador da cooperação para o desenvolvimento.

A menos de mil dias de se esgotar o prazo dos ODMs, vemos progresso em direção à primeira meta do milênio de reduzir à metade a proporção de pessoas com fome no planeta entre 1990 e 2015, mas ainda há um grande desafio pela frente: existem 870 milhões de famintos no planeta.

Os números frios poderiam sugerir que o passado não passa. No entanto, 40 países, entre os quais o Brasil, já alcançaram a meta.

Há algo mais que desalento no discernimento das nações em desenvolvimento. A pedagogia da crise acelerou uma promissora alavanca de iniciativas, baseadas na convicção de que a reconstrução da ordem mundial não pode ser dissociada das prioridades de quem luta contra a pobreza e a fome. A centralidade do desenvolvimento tornou-se o apanágio das nações que tem na equidade social a mola propulsora obrigatória de sua engrenagem de crescimento.

Essa visão de mundo já se traduz em um redesenho institucional, onde o multilateralismo em defesa de um desenvolvimento cooperativo e socialmente convergente interliga a emergência de uma nova constelação geopolítica.

A recente vitória da candidatura brasileira à direção da Organização Mundial do Comércio (OMC), com o embaixador Roberto Azevêdo, foi ancorada na mesma articulação de propósitos que, em 2012, conduziu o nosso nome para a diretoria-geral da FAO.

Desde o final dos anos 70, a segurança alimentar e o fomento agrícola perderam progressivamente o espaço que haviam conquistado nas políticas de cooperação para o desenvolvimento.

 

Não foi apenas um eclipse da solidariedade em benefício da suposta autossuficiência dos mercados. Uma parte da responsabilidade deve ser buscada no interior das próprias nações em desenvolvimento. Ainda que muitas vezes tangidas por imposições comerciais, a verdade é que em muitos a atenção à agricultura local foi negligenciada.

A estratégia brasileira de segurança alimentar implantada a partir do governo Lula trilhou um caminho oposto que deu certo e que tornou-se agora um dos mais valiosos instrumentos cooperativos na reconstrução da ordem internacional.

Nesse ínterim, o Brasil transformou-se na sétima economia mundial, deixando de ser visto como um receptor de ajuda internacional e passando a ser identificado como um doador e, especialmente, um fornecedor de assistência técnica em áreas nas quais acumulou inegável expertise entre as quais se destaca a agricultura.

Ser a ponte de um novo multilateralismo implica, porém, erguer pilares institucionais que o sustentem.

Dotar a Agência Brasileira de Cooperação (ABC) de um marco jurídico e um orçamento condizente com esse novo horizonte geopolítico é um imperativo.

A Embrapa terá que intensificar sua ramificação internacional para desempenhar seu papel como o maior banco de tecnologia e pesquisa em agricultura tropical do planeta.

Ao Consea cumpre equipar-se para compartilhar sua experiência naquele que é o principal desafio da luta contra a fome: a participação ativa da cidadania na formulação das políticas que garantam o acesso de todos ao direito a uma alimentação adequada.

Entendendo a importância da luta contra a fome nesse esforço, a Cimeira de Maputo em 2012 adotou a segurança alimentar como a primeira política comum dos países de língua portuguesa. Essa decisão lembra a União Europeia, que fez o mesmo nos seus primórdios ha mais de 50 anos. Nesse compromisso assumido, os países do bloco citaram o Brasil como exemplo e reconheceram o papel da sociedade na construção e implantação de políticas de segurança alimentar.

A maior novidade de todos esses processos, porém, é que eles não apenas resgatam a palavra cooperação, mas devolvem a ela sua dimensão intrinsecamente multilateral, nem sempre contemplada na política internacional nas últimas décadas.

Um exemplo prático desse novo entendimento é a aliança em prol da segurança alimentar na África, selada pela Comissão da União Africana e a FAO, com o apoio de outros atores - governos e fundações, como o Instituto Lula. Trata-se de um mutirão conduzido pelos próprios líderes africanos, que se reunirão em torno da agenda da segurança alimentar em Adis Abeba, na Etiópia, nos dias 30 de junho e 1 de julho.

A África está convencida de que não existe qualquer hipótese de desenvolvimento para seus povos que não venha associada à conquista da segurança alimentar, hoje indisponível para 240 milhões de pessoas no continente.

O encontro de Adis Abeba respira as novas certezas do mundo.

A crise financeira instalou a insegurança como eixo de rotação da economia internacional, mas simultaneamente aprofundou a convicção de que uma nova governança deve ser construída no século XXI. Seus atores são as nações que precisam se ancorar na justiça para crescer; seu idioma é o multilateralismo que reconhece a soberania dos povos e faz da parceria entre iguais o novo eixo ordenador da cooperação para o desenvolvimento.

Depois de comemorar tantas vitorias, chegou a hora do Brasil assegurar que poderá pagar a conta da sua nova dimensão internacional duramente conquistada.

 

José Graziano da Silva é diretor-geral da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO)

Fonte: CNA-SENAR

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