Artigo Técnico do Dia: REFLEXÕES E RELATOS SOBRE A PRÁTICA DA AGROECOLOGIA INTERMEDIADA PELA ALFABETIZAÇÃO ECOLÓGICA

Autoria de Walter José Rodrigues Matrangolo , em 27/03/2014

Pela perspectiva agroecológica, quanto maior o conhecimento do agricultor e da agricultora sobre as Leis Naturais que regem a dinâmica da vida, mais resiliente será sua atividade. 

As informações e os conhecimentos sobre a base ecológica permitem ampliar a capacidade de  construção de saberes locais.

 Eles podem ser  considerados insumos fundamentais para que haja ampliação da percepção relativa à complexidade inerente a qualquer sistema produtivo.

 Se desinformado, ampliam-se os riscos de prejuízos econômicos e socioambientais.

Para Nascimento (2007), “O agricultor será mais ou menos sensível ao meio ambiente se perceber o grau de restrição sofrido no exercício contínuo de suas atividades ou o nível  de vulnerabilidade ambiental atingido por  ausência ou limitação no uso de práticas conservacionistas dos recursos naturais.”

Os relatos que seguem buscam realçar a importância e os diferentes graus de desconhecimento ou de percepção relativos às Leis naturais, em  diferentes contextos. Ao mesmo tempo, é possível perceber a importância da Educação Ambiental (daqui para frente EA) pela via da Alfabetização Ecológica (daqui para frente AE):

 1 - Durante a infância, no caminho de casa para a escola, muitas eram as árvores dispostas nas calçadas. Algumas delas, ainda de pequeno porte, tinham galhos acessíveis à mão. Ao brincar de desfolhar as ramas dessas pequenas árvores (provavelmente uma sibipiruna - Caesalpinia peltophoroides), ouvi  uma voz de uma menina, também estudante, que vinha pouco atrás, e que ainda ecoa em  minha memória: não  faça  isso, as plantas também sentem dor! A primeira “ficha” caíra por  volta dos 10 anos de idade. Recebera então, minha primeira aula sobre EA de uma criança tão  nova quanto eu.

2 - O curso de Agronomia, que finalizei no ano de 1989,  careceu, em  larga escala, de conceituações ecológicas contextualizadas com o diverso ambiente rural brasileiro. A compreensão da importância das leguminosas na inclusão do nitrogênio dentro dos sistemas agropecuários chegou depois. A relevância ambiental e econômica dos compostos produzidos/sintetizados pelas bactérias simbiontes popularizou-se no ambiente acadêmico como tecnologia apenas com a disseminação da soja pelo Cerrado.

 3 - Em evento referente à temática ambiental destinado a estudantes da rede pública, no município de Sete Lagoas, Minas Gerais (MG) (bioma Cerrado, economia historicamente fundamentada na siderurgia, pertencente ao colar metropolitano de Belo Horizonte), fiz o seguinte questionamento, buscando desvelar relações da juventude da comunidade com o ambiente natural: “quem conhece a árvore do pequi levante mão!” Foi reveladora a reduzida reação dos estudantes.

 4 - Durante um  mês de julho bastante seco, como de hábito no Cerrado, após observar por  vários dias, certo senhor “incendiário” repetir o hábito de varrição e queima de folhas secas no passeio em  frente à sua residência, abordei-o da seguinte forma: “com esse tempo tão  seco e enfumaçado, não será melhor utilizar as folhas na horta ao invés de queimá-las?”. A resposta (na época pareceu-me bastante sincera), em  meio aos tufos de fumaça, realçava o analfabetismo ecológico: “Mas está precisando chover mesmo!”.

 5 - Em pesquisa sobre percepção ambiental junto a agricultores e agricultoras familiares na região central de MG, (MATRANGOLO et al., 2010),  foi notório o desconhecimento das funções ecológicas dos insetos agentes de controle biológico.

Os exemplos que seguem denotam a condição diversa, acanhada e pouco objetiva com que é tratada a temática ambiental por  parte das leis humanas. Na lei que rege o sistema de produção agropecuário denominado “Integração Lavoura Pecuária” (BRASIL, 2013),  em  seu art.  1º, parágrafo IV, foi destacada a necessidade de estimular e promover a EA, por meio de ensino de diferentes disciplinas, em todos os níveis escolares, assim como para os diversos agentes das  cadeias produtivas do agronegócio, tais como fornecedores de insumos e matérias-primas, produtores rurais,  agentes financeiros, e para a sociedade em geral (parágrafo IV).

 Já a também recente Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (BRASIL, 2012a) não explicita em  nenhum momento a EA em  seu texto. Apenas pontua em  seu Art. 4º, parágrafo V, que versa sobre os instrumentos da PNAPO,  a

- Formação profissional e educação. A palavra “ambiental” aparece associada à “servidão ambiental”, “conservação ambiental”, “regularização ambiental”, “cota ambiental”, “reserva ambiental”, “órgão ambiental”, “situação ambiental”, “licenciamento ambiental”, “impacto ambiental”, “dano ambiental”, “qualidade ambiental” “capacidade suporte ambiental”, mas nenhuma vez associada à palavra educação. No Novo Código Florestal (BRASIL, 2012b) não consta qualquer menção nem mesmo à palavra “educação”. Entretanto, no código anterior (1965),  constava no Art. 42. que dois anos depois da promulgação desta Lei, nenhuma autoridade poderá permitir a adoção de livros escolares de leitura que não  contenham textos de educação florestal, previamente aprovados pelo Conselho Federal de Educação, ouvido o órgão florestal competente.

Sendo a ciência da EA ponto chave para reverter o processo de degradação geral, é notória a fragilidade dos instrumentos formais criados pelo Estado para a reversão do processo de degradação socioambiental. Parece ficar cada vez mais dilatada, em  nossa sociedade de consumo, a lacuna cultural a ser preenchida para a disseminação da perspectiva agroecológica, necessária para fazer  frente à complexa problemática ambiental. Mesmo quando é minimamente contemplada, ainda assim, há o paradoxo criado pelas modalidades de EA, que nem sempre buscam transformações profundas e necessárias. Assim como o termo “sustentabilidade”, a EA também vem sendo apropriada como mais um  instrumento de perenização do modelo concentrador e linear vigente, conforme destaca Lima (2002),  em  relação às diferentes tendências:

 Tendências de EA conservadora são  caracterizadas por:

1 - uma concepção reducionista, fragmentada e unilateral da questão ambiental; 2 - uma compreensão naturalista

e conservacionista da crise ambiental; uma tendência de sobrevalorizar as respostas tecnológicas diante dos desafios ambientais; 3 - uma leitura individualista e comportamentalista da educação e dos problemas ambientais; 4 - uma abordagem despolitizada da temática ambiental; 5 - uma baixa incorporação de princípios e práticas interdisciplinares; 6 -

uma perspectiva crítica limitada ou inexistente; 7 - uma ênfase nos problemas relacionados ao consumo em  relação aos ligados à produção; 8 - uma separação entre as dimensões sociais e naturais da problemática ambiental; 9 - uma responsabilização dos impactos ambientais a um  homem genérico, descontextualizado econômica e politicamente; 10 - uma banalização das noções de cidadania e participação que na prática são reduzidas a uma concepção liberal, passiva, disciplinar e tutelada.

 Tendências de EA emancipatória são  caracterizadas por:

1 - uma compreensão complexa e multidimensional da questão ambiental; 2 - uma defesa do amplo desenvolvimento das liberdades e possibilidades humanas e não humanas; 3 - uma atitude crítica diante dos desafios da crise civilizatória; 4 - uma politização e publicização da problemática ambiental; 5 - uma associação dos argumentos técnico-científicos à orientação ética do conhecimento, de seus meios e fins, e não sua negação; 6 - um  entendimento da democracia como pré-requisito fundamental para a construção de uma sustentabilidade plural; 7 - uma convicção de que o exercício da participação social e a defesa da cidadania são práticas indispensáveis à democracia e à emancipação socioambiental; 8 - um  cuidado em  estimular o diálogo e a complementaridade entre as ciências e as múltiplas dimensões da realidade entre si, atentando-se para não tratar separadamente as ciências sociais e naturais, os processos de produção e consumo, os instrumentos técnicos dos princípios éticos-políticos, a percepção dos efeitos e das causas dos problemas ambientais e os interesses privados (individuais) dos interesses públicos (coletivos), entre outras possíveis; 9 - uma vocação transformadora dos valores e práticas contrários ao bem-estar público.

 Alfabetização Ecológica como Instrumento para a Transição Agroecológica

Fundamentada na visão sistêmica da vida  e em  suas relações interdependentes, a prática agroecológica busca a inclusão da biodiversidade nos processos produtivos. No entanto, há um grande desconhecimento da sociedade em  geral a respeito dessa biodiversidade e sobre as Leis que regem suas dinâmicas, que procede, em  parte, de uma cultura onde ainda predomina o modo linear de ver o mundo, no qual prevalecem aspectos quantitativos e distanciados da natureza. Para Lima (2002):

“Grande parte do pensamento econômico, em  seus surtos de arrogância e miopia, tem esquecido o princípio elementar de que toda economia e toda riqueza social são, em  última instância, tributárias do meio natural, lastro fundamental de todo crescimento. Esquece-se que toda acumulação de riqueza produz uma desacumulação do ambiente”.

 Surge a necessidade de trazer para dentro dos processos produtivos relacionados às atividades humanas, conceituações em  ecologia. “A ecologização da mente humana deve preceder a ecologização da nossa Terra. A mente ecologizada é aquele que cuida, salva e compartilha. São qualidades essenciais para a  conservação da diversidade biológica agora e para sempre” (SWAMINATHAN,  1996).

As mudanças obtidas e esperadas pela Agroecologia, com o modus operandi renovado, não prescindiram nem prescindirão de conceituação em  Ecologia (por  vezes conhecida intuitivamente por  intermédio da observação). Fundamentalmente lastreadas pela inserção da Ecologia e das Leis Naturais implícitas, tais  mudanças se voltam para a busca do predomínio da qualidade sobre a quantidade, onde a partilha, a complexidade e a diversidade sobrepujam a competição, o pensamento linear e a monocultura. Assim refletem sobre o tema Dias e Mazzeto (2011): Combater a ideologia individualista do capitalismo de consumo e tentar criar o sujeito ecológico seria  uma das  principais etapas para melhorar a relação entre o homem, sociedade e natureza. A AE como fundamento para as práticas agroecológicas vai de encontro ao pensamento de Antifonte (séc. V a.C.), que há muito percebeu o que cada vez mais parece adequado e imprescindível, principalmente quando nos deparamos com crescente apropriação do termo “sustentabilidade” pelo discurso mercadológico/financeiro, invariavelmente destituído de lastros científicos: “As normas legais são acessórias, as naturais são essenciais (Antifonte, séc. V a.C.)”  citado por Tiezzi (1988).  De Boef e Thijssen (2007) destacam a importância do conhecimento relativo à realidade do entorno, à leitura da paisagem ... por  meio do mapa ilustrado dos recursos naturais e o uso da terra, é possível auxiliar os participantes a chegarem a uma distribuição espacial e a utilização dos recursos naturais, além de auxiliar a conectar famílias, instituições, biodiversidade, sementes e recursos naturais.

 A AE é tratada como estratégia para popularizar a ciência por Gadgil et al. (1993),  Pierotti e Wildcat (2000) e Davis  e Wagner (2003),  sendo a base de conhecimento acumulado que descreve os componentes do ecossistema local  e suas interações mais comuns derivadas de um  conjunto de observações acumuladas. A popularização da ciência surge como necessidade para que todo cidadão torne-se ativo colaborador no processo de mudanças. Faz-se necessário disponibilizar informações de forma clara, que considere a complexidade inerente ao atual estágio de desenvolvimento de nossa sociedade.  A construção do sujeito ecológico demandará mudanças profundas, conforme considerou Brügger et al. (2005):

E mudanças profundas só se realizam na ótica da ecologia profunda. Para os que a consideram apenas como mais uma “religião”, eis o cerne da questão: se a história do homem sobre a Terra caracteriza-se por  uma progressiva ruptura entre o homem e o entorno, só a ecologia como ”religião” (do latim “religare”) poderá nos reconectar como entorno.

 O “religare” exige aquisição de componentes perceptivos que, pela perspectiva local  e com o uso da lente da complexidade, permitam a observação dos fatos interconectados pelas Leis Naturais. Com  o auxílio da AE, relações de causa e efeito se desvelam no contato com a biodiversidade, consubstanciadas que estão pela práxis Agroecológica, favorecendo o  empoderamento das comunidades. Para o geógrafo Raffestin (1993), o poder, quanto aos  meios mobilizados, é definido por uma combinação variável de energia e informação. Com esses dois elementos presentes, é possível dizer  que há poderes com forte componente energético ou,  inversamente, poderes com forte componente informacional.

 As comunidades de prática agroecológica estão inabilitadas para promover as mudanças pela força, de tal modo que o componente cultural fundamentado nos conceitos ecológicos apresenta-se como um  caminho capaz de fortalecê-las.

 Exemplo de Alfabetização Ecológica

O Centro de Ecoalfabetização foi fundado em  1995 por  Fritjof Capra, físico  e pensador sistêmico, Peter Buckley, ex-diretor executivo da Esprit Internacional e filantropo ambiental e Zenobia Barlow, que atua como diretora executiva da instituição. Localizado em  Berkeley, na Califórnia, no David Brower Center, promove ações ambientais e sociais (http://www.ecoliteracy.org/about-us/what-we-do). A experiência em curso no Centro de AE de Berkley (http://www.ecoliteracy.org/)  é avaliada da seguinte forma por  Duailibi (2006):

 Uma horta para a AE passa a ser  não apenas um  local  de produção de alimentos sem agrotóxicos para a merenda escolar e/ou para gerar renda complementar a comunidade, mas o local onde se observam os ciclos e fluxos dos ecossistemas, onde se aprende que na natureza o resíduo de uma espécie é o alimento de outra, onde se reconhece o sol como fonte essencial de energia, se reconhece o processo metabólico, se percebe a inter-relação existente entre todos os ecossistemas que, mesmo sendo redes completas, se aninham dentro de outros, estabelecendo relações mais amplas e assim por  diante.

Essa forma de ensinar, que depende do conhecimento das Leis Naturais e, portanto, de uma AE contextualizada, diz respeito ao que há muito Freire (1979) revelou quanto ao  diálogo entre técnicos e camponeses, em  seu livro Extensão ou Comunicação:

É então indispensável ao ato  comunicativo, para que este seja eficiente, o acordo entre os sujeitos, reciprocamente comunicantes. Isto é, a expressão verbal de um  dos sujeitos tem que ser  percebida dentro de um  quadro significativo comum ao outro sujeito.

Sem isso, o diálogo para a construção do conhecimento Agroecológico ficará truncado pela incompreensão relativa às palavras e expressões utilizadas. Capra (2002) considera seis princípios indispensáveis para a inclusão da AE no processo educacional:

 

REDES: Em todas as escalas da natureza, encontramos sistemas vivos alojados dentro de outros sistemas vivos – redes dentro de redes. Os limites entre esses sistemas não são limites de separação, mas limites de identidade. Todos os sistemas vivos comunicam-se uns com os outros e partilham seus recursos, transpondo seus limites.

CICLOS: Todos os organismos vivos, para permanecer vivos, têm de alimentar-se de fluxos contínuos de matéria e energia tiradas do ambiente em  que vivem; e todos os organismos vivos produzem resíduos continuamente. Entretanto, um  ecossistema considerado em seu todo, não gera resíduo nenhum, pois os resíduos de uma espécie são os alimentos de outra. Assim, a matéria circula continuamente dentro da vida. 

ENERGIA SOLAR: É a energia solar, transformada em  energia química pela fotossíntese das plantas verdes, que move todos os ciclos ecológicos.

ALIANÇAS (PARCERIAS): As trocas de energia e de recursos materiais num ecossistema são sustentadas por  uma cooperação generalizada. A vida  não tomou conta do planeta pela violência, mas pela cooperação, pela formação de parcerias e pela organização em redes. 

DIVERSIDADE: Os ecossistemas alcançam a estabilidade e a capacidade de recuperar-se dos desequilíbrios por  meio da riqueza e da complexidade de suas teias ecológicas. Quanto maior a biodiversidade de um  ecossistema, maior a sua resistência e capacidade de recuperação. 

EQUILÍBRIO DINÂMICO: Um ecossistema é uma rede flexível, em permanente flutuação. Sua flexibilidade é uma consequência dos múltiplos elos e anéis de realimentação que mantêm o sistema num estado de equilíbrio dinâmico. Nenhuma variável chega sozinha a um  valor máximo; todas as variáveis flutuam em  torno do seu valor ótimo.

A observação de Loureiro et al. (2002) enriquece e amplia a discussão:

“Não se cria  um  cidadão ativo só por  sua capacidade técnica no trato da questão ecológica, mas é necessário articular a apreensão de conhecimento com a participação.” E participar desse processo exige a incorporação de novas palavras e expressões, que unidas às vivências, fomentam o empoderamento comunitário. O princípio ecológico da  ALIANÇA/PARCERIA reforça a importância da busca intencional das mudanças pela construção coletiva, ao interconectar indivíduos, instituições e natureza.

Leia o artigo na íntegra, clicando AQUI.

 (Artigo publicado em “Grão em Grão” - Ano 08 - Edição 52 - Fevereiro e Março de 2014 – Embrapa Milho e Sorgo)

Fonte

CEAD-UFV

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